Reproduzo com muita honra um texto do conterrâneo José Cláudio Mota Porfiro, que exalta o modo xapuriense de ser e destaca o civismo perdido....
Aquele era um tempo de muitas luzes e sons. A vida parecia sorrir, principalmente, para a nossa realidade pacata. Mas haviam fechado o sinal, como na poesia. Se estávamos tão distanciados, física e geograficamente, pela falta dos meios de comunicação, àquela época sob a atenta vigilância dos homens de ferro; política e ideologicamente, éramos mantidos a anos luz de distância da aspereza de um regime político que cerceava liberdades individuais e matava poetas afoitos como tantos.
Sorríamos, sim, mas as luzes da liberdade real eram pontinhos muito tênues no fim de um túnel que não existia. Éramos jovens massas de manobra de um sistema assassino... Até que, um dia, um certo pastor católico passou a pregar uma doutrina ímpar que dizia da igualdade que poderia pautar as nossas relações sociais. Passamos a ler, então, uns mosaicos ideológicos ditos comunistas. Foi aí que, em 1975, o mestre Jofre Koury, de grata memória, pôs-me a ler Os subterrâneos da liberdade e, depois, O cavaleiro da esperança, ambos de Jorge Amado, um intelectual proscrito.
E o resultado se fez bombástico. Tolheram o esclarecimento das futuras gerações. Fecharam o Colégio Divina Providência. As religiosas da Ordem das Servas de Maria foram dispersas e o Estado passou a gerir um sistema de ensino laico, nada parecido com o dos áureos tempos.
Mas deixemos as notas tristes de um passado tão recente...
Eu me nutro ainda de tanto amor pátrio porque tenho uma alma interiorana. Asseguro-vos que é nas pequenas comunidades brasileiras onde o civismo brilha com mais intensidade, com terno fulgor. Esta é uma conclusão a que cheguei desde os tempos remotos da meninice, em Xapuri e, depois, nas épocas da juventude que até hoje dura, nesta minha capital seringueira. Ao crescerem, mesmo as quase metrópoles, como Rio Branco, tendem a ir perdendo o vigor cívico, como hoje, quando o Dia da Independência é marcado no calendário muito mais por se tratar de um feriado no qual o descanso e a folia devem ser a tônica.
Décadas de sessenta e setenta. Agosto e setembro eram meses de muita euforia. Eu só não me podia descuidar dos estudos - nunca - sob pena de sofrer as mais severas sanções por parte dos rígidos discipli-nadores lá de casa. De resto, era tão somente de amor cívico que todos nós enchíamos o peito e a alma de pequenos brasileiros, projetos de grandes cidadãos, preocupados com o nosso futuro e com o futuro da Pátria amada.
Apesar dos desiludidos com a terra natal (deles) eu, como o filósofo Voltaire, francês, costumo afirmar que a minha pátria tem qualquer coisa de divino que faz chorar a quem se ausenta dela e, principalmente, aos que sentem por ela amor verdadeiro. Em verdade, nós somos filhos orgulhosos de uma jovem Pátria e não mais haveremos de nos decepcionar com o seu passado ou com o seu futuro.
Chega!
Naqueles tempos já distantes, logo depois das férias de julho, então, vinha o seis de agosto. Aí, todos os estudantes do Plácido de Castro, do Divina Providência e do Anthero Bezerra, devidamente uniformizados, iam em marcha e ao rufar dos tambores, perfilar-se em frente à antiga Intendência Boliviana, hoje chamada Casa Branca, onde cantávamos o Hino Nacional e o Hino Acreano, de olhos fixos na estátua de Plácido de Castro, o grande herói dos acrea-nos e exemplo maior a ser seguido pelos que o têm enquanto padrão de honra, dignidade e valentia em defesa da Pátria.
A grande maioria da garotada poderia perder qualquer programação, até deixar de ir a um joguinho de futebol, mas perder uma formatura, nem pensar.
Cedinho, já todos nós estávamos no Colégio Divina Providência colocando-nos em forma, sob a batuta do Tião Macedônio, professor de Educação Física e responsável pela ordem unida, uma espécie de ensaio que se verificava todos os dias com vistas ao sete de setembro. Era demais! Eu não cabia em mim de tanto orgulho, desde o dia em que, aos sete anos, desfilei com uniforme de marujo, desenhado e confeccionado com extremo capricho pela minha madrinha Eulália Brasileiro. Sua bênção!
Nos dias que antecediam o grande desfile, eu, o Bertamildo de Jesus e o Geraldo Leite, à tardinha, íamos para o quintal lá de casa para ensaios cansativos. Os dois primeiros tocando corneta e o grande cantor tocando um trombone contra-baixo. O Motinha, o irmão mais sacana do mundo, tocava uma caixinha e nós éramos, ao todo, uma fanfarra de vinte e oito alunos cheios de extremo contentamento.
Os últimos grandes ensaios, à noite, se transformavam em acontecimentos memoráveis. Os porta-bandeiras à frente, logo em seguida a fanfarra, depois os rapazes e enfim, as moças. Marcos, um dos irmãos mais velhos lá de casa, carregou a bandeira brasileira por quatro anos seguidos pelo fato de ser o melhor aluno do Colégio. É verdade e muitos xapurienses ainda confirmam o feito. Em 1968, ele obteve nota dez em cem por cento das dez disciplinas da quarta série do ginásio. E ficaram todas as provas expostas num mural por três ou quatro meses.
Lembra-me muito, aqui, o Olavo Bilac no seu Porque me ufano do meu país. É talvez piegas para uns, mas deveras importante para muitos.
Para encher de júbilo ainda maior, as moças, mais ou menos umas cento e vinte, acompanhadas pelos rapazes, uns cento e trinta, em marcha e sob o rufar apenas das caixinhas e taróis, entoavam o Hino da Independência, o Hino do Soldado e a Canção do Marinheiro, dentre outras. Naqueles pelotões, sempre muito bem afeiçoada, seguia intrépida e aguerrida, a hoje pranteada Maria Tapajós de cuja memória também não esqueço. À insigne juíza e ao meu bom cantor Geraldo Leite seria oportuno asseverar que, como escreveu Ernest Renan, no seu Discursos e conferências, uma pátria compõe-se dos mortos que a fundaram, assim como dos vivos que a continuam. Ide em paz, irmãos!
Existia no Divina Providência umas moças muito inteligentes e prendadas. Eram as irmãzinhas da Ordem das Servas de Maria que, desde o início das férias de julho, tomavam para si a incumbência de desenhar e confeccionar, um a um, adereços, alegorias, coroas, cetros, vestimentas especiais, mastros e bandeiras.
E vinha o cinco de setembro, entre nós, o Dia da Raça. Era este um dia tão especial quanto o Dia da Pátria. O uniforme era mais esportivo - ou mais ousado, na opinião das freiras - para o desfile da manhã e, à tarde, os escolares iam para o estádio de futebol. Lá, em competição acirrada, praticavam-se esportes de um outro tempo. Havia torneio de futebol feminino, formação de pirâmides humanas, corrida do saco, corrida da agulha, corrida do ovo na colher, cabo de guerra, maratona, e assim por diante.
No sete de setembro, ainda manhãzinha, todos já estavam entrando em forma em meio a grande contentamento. Havia bolo e chocolate. Era o melhor dia do ano! O uniforme da fanfarra era uma míni gandola verde ou vermelha e calça branca, dependendo do ano, ornadas de ombreiras e torçais dourados, e um gorro comprido e cilíndrico com uma pluma no alto estilo cadete. Os demais iam em camisas brancas de manga de punho e luvas da mesma cor, gravatas e calças azuis e sapatos pretos lustrosos como a etiqueta e a ocasião exigiam. As saias da moças iam até os joelhos, as meias eram bem longas e as luvas iguais às dos rapazes. Havia, é claro, duas ou três balizas.
Todavia, eram os carros alegóricos do Divina Providência que davam muito mais colorido à festa. Lá no alto, devidamente coroados, postavam-se D. João VI, D. Pedro I, D. Pedro II, Princesa Isabel, dentre outros. Enfim, toda a cidade ia para a avenida Coronel Brandão aplaudir os garbosos filhos.
Numa dessas ocasiões vi lágrimas abundantes rolarem dos olhos de Alfreda Patrini e Regina Molinetti, a artista plástica e a madre superiora, respectivamente. A beleza do desfile houvera emocionado as italianas mais queridas dentre todas que conheci.
Ainda hoje emociona recordar. É que, nos corações menos moços, ainda há tempo para patriotismos nada ponderados e às vezes melífluos, mesmo na modernidade e, muito mais, quando o Brasil surge como uma das grandes nações do mundo. Como na poesia, a minha Pátria é aquele lugar onde a minha alma está acorrentada.
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