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quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Absoluto e relativo

Por: Alexandre Gomes
A noção de que a verdade é múltipla e certa interpretação, a meu ver equivocada, do termo “pluralismo” – designando não a multiplicidade de opiniões e o direito à existência desta multiplicidade, mas a igual validade de todas as visões de mundo – parecem a primeira vista uma idéia muito simpática e pacificadora. Como qualquer visão do mundo é possível, legítima e igualmente válida ninguém tem o direito de tentar impor a sua a outro – o que é correto – mas também não precisa justificar a sua, convencer, persuadir e, sobretudo, buscar os pontos em comum e a partir dos muitos pontos de início da largada tentar chegar a um ponto de vista comum na chegada.

A noção de que tudo é relativo, a negação do absoluto, tem, então, o efeito de eliminar todas as chances de unidade, separam-se as idéias, os conceitos e os seres humanos em grupos que não só são distintos como estão condenados a afastarem-se cada vez mais. Como admite que todas as verdades sejam válidas de um lado deixa de permitir que as idéias se troquem, se mesclem e busquem a aproximação com a verdade, de outro estabelece que como o embate não possa ser feito no plano das idéias – visto que todas são igualmente válidas – nem se precisa justificar as ações, que seriam incompreensíveis aos que não compartilham delas, nem se pode buscar outra forma de lidar com o outro senão com a conversão forçada ou emocionalmente motivada.

Os filósofos gregos, que não caíam nestas armadilhas, distinguiam entre a doxa, a opinião, e a verdade. Ainda que só já na sua fase de decadência esta distinção tenha precisado ser teorizada, argumentada e defendida – e diga-se de passagem esta é a grande crítica de Sócrates, Platão e Aristóteles à democracia ateniense, para os quais a forma como os tiranos tinham estruturado a democracia levava ao império da doxa no lugar do conhecimento – a idéia sobrevive até época bem recente.

A noção de absoluto, é preciso dizer, desmoralizou-se com o passar do tempo porque foi sendo utilizada não como método de buscar a unidade, mas como mera desculpa ou pretexto para uma dominação baseada na força. Mais uma vez destaco meu ponto de vista que a “rebelião das massas”, o processo que corre no mundo atual quando o vulgar se impõe como regra e esforça-se por esmagar o seleto, é culpa da incapacidade moral e intelectual daqueles que ocupando a função de elite – ou seja, sem que fosse a elite de fato – utilizam as noções da tradição e do absoluto apenas como desculpas e meios para manter-se no poder, perdendo toda a autoridade.

E é porque a busca do absoluto no qual se faz o caminho da opinião ao conhecimento foi infinitas vezes utilizado não como deveria mas como instrumento de dominação política, econômica e – para usar um termo caro aos marxistas, mas ainda assim útil quando compreendido de forma mais abstrata – ideológica que se desmoralizou e – de fato – transformou-se naquilo que hoje dizem os ideólogos do homem-massa: ferramenta de manipulação.

Isto não significa que o pensamento relativista, segundo o qual cada um pode ter a sua própria verdade tenha triunfado. A Igreja preferiu em um momento crítico na sua história a Inquisição ao diálogo e ao convencimento, ela também abriu mão do absoluto porque tirou dele justamente a sua característica de levar à unidade. O preço que pagou por isto é a dessacralização do mundo em que vivemos, ou seja, o fracasso da sua missão de elite.

Processo semelhante vem acontecendo com a ciência. Desgrudada dos fins, buscando a sua justificativa em algum movimento inelutável que passa por cima de tudo – como no debate sobre clonagem, pesquisa com embriões e até no tema mais concreto da vivisseção de animais em pesquisa – a ciência vai se ideologizando, virando cientificismo e também perdendo seu caráter persuasivo para vestir-se com poder – não com autoridade – e assim condenar a si mesma ao mesmo fim que a história reservou a todos os conhecimentos que deixaram de visar o fim último de encontrar a unidade das opiniões na verdade: virar mero pretexto político e desmoralizar-se.

Sinto-me à vontade para ler tanto Guénon atacando a ciência e o mundo moderno como o cético Carl Sagan em “O mundo habitado pelos demônios” ou “Dragões do Éden” defendendo a ciência e atacando as superstições. Paradoxal, mas não mera coincidência, que o ataque de ambos se volte contra as superstições, em particular contra o que hoje pode ser chamado de “novo-erismo”. É afinal na caricatura da tradição ou da ciência – e ás vezes de ambos – que este novo-erismo vai buscar algum poder – já que não tem como ter autoridade porque é justamente o pensamento do homem-massa por si só, sem nenhuma autoridade.

E o que é a superstição senão aquilo que sobrevive de uma estação no caminho do absoluto, um fragmento perdido que ao ser retirado do contexto deixa de ter significado próprio, passa então a ser relativo. A própria ciência vai se tornando uma superstição na medida em que deixa de ser um caminho para o absoluto para tentar tornar-se instrumento de poder, tornando-se uma destas muitas verdadezinhas irredutíveis a unidade com as quais se forma esta noção relativista.

As assim chamadas ciências sociais e humanas e a filosofia moderna – para a qual filósofo é o que detém um determinado título não aquele que fez alguma contribuição original e relevante ao pensamento humano, concepção que tem algo de supersticiosa por atribuir importância ao pedaço de papel e não ao conhecimento – já estão em grande parte dissolvidas nesta sopa. A biologia e as ciências médicas caminham rapidamente pelo mesmo caminho porque já não são capazes de justificar muitos de seus procedimentos senão invocando o supersticioso argumento de que não se pode deter o caminho da ciência – argumento que encontrei inúmeras vezes contrapondo-se a legislação de Proteção Animal e que vejo agora repetido na questão da utilização de embriões humanos – que revela a incapacidade de formular qualquer argumento objetivo, persuasivo e acaba sendo o mesmo que se utilizava na Idade Média para justificar a inquisição.

Mesmo desmoralizado pelo mau uso, contudo, continuo a acreditar que o absoluto é possível e não posso aceitar as idéias relativistas segundo as quais cada grupo, religião, sistema de crenças, opinião política são ilhas com o mesmo direito. Admitir isto para mim é aceitar que como todos tem razão a única forma de chegar a uma conclusão é nos matarmos para ver qual é afinal o mais forte, ao invés de debater com sinceridade para talvez descobrir que todos estavam no caminho certo mas não conseguiam enxergar o quadro todo porque faltavam unir os vários pedaços.

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