Excelente matéria publicada no (Correio da Cidadania) no dia 11 de junho escrita pelo jornalista Gabriel Brito e demonstra acima de tudo o sentimento brasileiro nesta Copa de 2010.
Finalmente se passaram quatro anos e estamos novamente às portas de mais uma Copa do Mundo. São dias demais de torcida, trabalho, jogos, expectativa, até darmos de cara com um novo mundial. Tudo para desaguar no segundo carnaval da temporada no país, no entanto, com adesão e comoção populares ainda mais intensas. Todos gostam de futebol e da seleção quando os melhores do mundo se reúnem para disputar uma taça.
Sem rivais por perto, não nos resta outra a não ser torcer em uníssono por uma mesma camisa, partilhar uma preferência apaixonada e confraternizar sem distinções qualquer seja o resultado. Experiências únicas na vida, daria pra dizer. Todos esses momentos nos são transmitidos logo quando vamos ver nossa primeira copa, cercados por parentes e agregados, veteranos de outras epopéias canarinhas, que nos contam as misérias que os craques brasileiros já fizeram mundo afora contra outras esquadras.
Todo esse prólogo para admitir que, apesar de todos os maus tratos sofridos por essa instituição do futebol mundial, é muito difícil não torcer por um sismo no país no próximo 11 de julho, provocado pelo delírio da sexta estrela no peito. Mas também é preciso admitir, lamentar, praguejar, que esta seleção é um dos maiores atentados à essência do futebol brasileiro, um acinte provocado por uma cadeia de pessoas e mentes medíocres – e que ainda querem ensinar-nos a ser brasileiros.
Como todos sabem, o Brasil tinha uma excelente e vencedora seleção para a Copa de 2006, mas uma monumental onda de soberba tomou conta do escrete, tendo a CBF transformado a preparação num picadeiro para a mídia e os anunciantes. Com uma geração de talentos tragada pelo marketing incessante e um Parreira conformado antes da hora, a seleção fracassou de forma asquerosa, perdendo para uma combalida mas determinada França, sem praticamente dividir uma bola ou criar uma chance de gol.
Como nunca se vê em outros assuntos, o país exigiu cabeças. Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo, Roberto Carlos, Adriano tinham de perder a cidadania brasileira e era urgente a volta do compromisso com a amarelinha, o que exigiria drástica mudança de filosofia, pois a seleção tinha ido desfilar, e não jogar, na Alemanha. Havia 100% de razão nas críticas.
No entanto, nunca foi feita uma análise completa do fiasco, de forma a atingir os verdadeiros responsáveis. E agora pagamos caríssimo por tal ‘negligência’. Para botar ordem na casa, o presidente da CBF Ricardo Teixeira nomeou Dunga, o capitão do tetra, para o cargo imediatamente inferior ao de Lula.
Sua missão era acima de tudo reavivar o patriotismo, o orgulho e o compromisso dos atletas com a seleção, de modo que a torcida não perdesse (ainda mais) o afeto pelo time, cada vez menos identificado com a nação. Com os torcedores já tendo de se conformar em ver nossas maiores jóias pela TV em campeonatos europeus, uma seleção desinteressada em honrar as tradições nacionais no futebol simplesmente perderia sua razão de ser. Mais uma vez, correto.
Nem tanto ao céu, nem tanto a terra
No entanto, quem inventou o circo de 2006 não foi Ronaldo, Ronaldinho, Roberto ou algum outro subalterno. Foi a CBF quem decidiu comercializar o período de treinos da seleção, vendendo ingressos para encher o pequeno estádio de Weggis (SUI) todos os dias e abrindo as porteiras para seus patrocinadores montarem tendas e enchê-las com seus famosos VIPS, trazendo todo tipo de pária da sociedade de celebridades e futilidades para o seio da família verde e amarela.
O responsável único por isso se chama Ricardo Teixeira, que está mais senhor do que nunca no futebol nacional e chefia como quer a caravana da alegria da Copa de 2014. O ex-genro de João Havelange preside a CBF desde 1989 e escapou ileso das famosas CPIs do futebol de inícios da década, quando incontáveis falcatruas ficaram claras. Nada como uma prestativa bancada de parlamentares ligados à lama futebolística para garantir impunidade e uma triunfal volta por cima.
Voltando ao assunto, Dunga chegou mostrando que as mudanças não eram de discurso, e desde as primeiras convocações abriu mão das estrelas agora desmoralizadas – inclusive as responsáveis pelo penta. Renovar era preciso, até por uma questão geracional, e aos pouco Dunga foi montando seu novo time, centrado no mantra do compromisso e do patriotismo.
Alternando bons e péssimos jogos, ganhamos a Copa América contra a Argentina em 2007. Com os bons jogadores que sempre tem, o Brasil pode ser respeitável mesmo mal montado. O time evoluiu, venceu a Copa das Confederações em 2009 e fechou as eliminatórias em primeiro lugar. Tudo nos trinques. O Brasil passara o ciclo pré-Copa refeito. E com um time mais definido, portando claras dificuldades e valiosas virtudes.
A seleção de Dunga baseia seu jogo numa forte e segura defesa. Seu meio campo possui dois volantes limitadíssimos, que dificultam o primeiro passe e quase impedem que o time tenha grande posse de bola. A esperança é Kaká, que sofreu com lesões durante seu atribulado ano, inclusive uma pubalgia. No ataque, Luis Fabiano e Robinho impõem respeito, mas não chegam à categoria de avantes de feliz memória nossa. Fora isso, há uma grave lacuna na lateral esquerda desde o fim da era Roberto Carlos.
A esperança é que Elano, Ramires ou o lateral direito reserva Daniel Alves dêem um jeito na meia-direita, o que já qualificaria o meio brasuca. Por abrir mão da escola de técnica e refinamento, não temos um meio que retenha tanto a bola. O que nos obriga a ter boa retaguarda e letal contra-ataque, atributos alcançados por Dunga em seu trabalho.
Porém, é muito pouco para o Brasil. Contrariando o discurso inicial, a renovação dunguista foi mais moderada do que se pensava. Diversos volantes que apareceram nos últimos anos foram ignorados; Ronaldinho Gaucho se apagou, retomou a forma, mas foi descartado; Neymar e Paulo Henrique Ganso assombraram o país com suas magias no Santos, mas não foram considerados, pelo que se verá adiante.
Brameiros
No esperado 11 de maio, dia da lista final de jogadores, os novos tempos prometidos mostraram sua face oculta. Dunga fez uma convocação ultraconservadora, ignorou os novos talentos, levou jogadores em péssima fase sob a alegação de serem parte do grupo, comprometidos, e abriu fogo contra a imprensa e meio mundo.
Acostumados a acusar duas ou três teimosias dos técnicos ao longo das copas, deparamo-nos com uma lista em que queríamos trocar uns 10. Doni, Julio Baptista e Kleberson passaram o ano na reserva de seus times e foram lembrados. Michel Bastos e Gilberto foram chamados para a lateral esquerda sem atuarem na posição em seus respectivos clubes – Michel é meia-direita no Lyon (FRA)! Apenas quatro atacantes e nenhuma opção para Kaká.
Anunciado o atentado, Dunga vociferou contra tudo e todos, ressaltando que aquele grupo de escolhidos era o dos jogadores que haviam ‘fechado’ com ele, estavam compromissados e tinham idéia da importância de vestir a camisa da seleção. E que por coerência e lealdade deveriam ser mantidos, a despeito do que se passa em campo. Foi talvez a única ocasião em que um treinador (e a entrevista durou quase duas horas) não se apoiou, em momento algum, em argumentos técnicos para justificar suas escolhas.
Como se não bastasse, seu auxiliar-pastor Jorginho rompeu o protocolo da coletiva, tomou a palavra e disparou um inesquecível sermão de brasilidade. Exclamou que somos todos brasileiros, que todos devem torcer e ser patriotas e que a imprensa deve ter pacto de sangue com o time, pois um título traria benefícios a todos, especialmente a profissionais que trabalham ligados à área. Fora isso, é claro que podemos ser críticos.
Assim, subentendia-se que só aqueles iluminados eleitos eram seres humanos capazes de se sacrificar pela seleção e entrar em campo imbuídos do espírito necessário a uma grande guerra. Sim, pois a Copa do Mundo é batalha, como atesta um famigerado comercial de TV, que transforma brasileiros de cerveja na mão em cavaleiros medievais em busca do hexa.
Com o tetra ainda vivo em si, Dunga bancou até o fim a queda de braço com seus detratores. Montou um time à sua imagem e semelhança, ignorando outras variantes de futebol. Escolheu jogadores, se não brilhantes, esforçados, que ‘compraram’ a idéia. Alguns, até por saberem da sorte que têm de integrar a seleção, se tornaram devotos dos ditames dunguistas. Os melhores, por sua vez, são disciplinados e exemplares. Não há espaço para transgressão. Talvez não houvesse para Garrincha. Ensimesmado em suas vivências e convicções, Dunga prefere morrer com suas idéias a viver com a dos outros. Não se pode duvidar de quem levanta uma taça de Copa do Mundo e se lembra em primeiro lugar de seus críticos.
E assim parte a seleção para a Copa do Mundo, carregando todos aqueles sentimentos rememorados nas primeiras linhas. Com um técnico limítrofe e recalcado, um pastor e o novo livro de Augusto Cury na concentração, patrocinadores fazendo brasileiros trocarem o samba por armaduras e lanças das Cruzadas e Don Teixeirone no comando de tudo (até 2014). E exigem que sejamos patriotas.
Pode deixar Dunga, pois o pior é que seremos mesmo. Temos direito, afinal, esperamos quatro anos para ter gosto deste país. Esse ópio é do bom e na Copa estaremos todos alucinados em busca do hexa.
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