Por:Inacio Strieder
Quando se manifestam doenças e epidemias, começamos a nos preocupar mais com a saúde. O mesmo acontece com as doenças sociais e culturais. Diariamente somos confrontados com escândalos, dinheiros nas cuecas e nas meias, evasão de divisas (também por supostos bispos e bispas), falsificação de documentos, contrabandos, rombos, assaltos, sequestros, "marajás", abusos de poder, crimes, homicídios, violências, toruras, estupros, salários malpagos, aluguéis extorsivos, juros agiotas de bancos e cartões de crédito, políticos corruptos, atropelamentos por alcoolizados, e mil outras falcatruas e desmandos. Tudo isto manifesta que nossa convivência está corroída e doente. Espontaneamente brota a pergunta: existe remédio ou teremos que conviver necessariamente com tal situação, que se alastra como epidemia por toda a sociedade brasileira?
Esta situação nos leva a uma reflexão antiga, mas sempre atual, que pergunta pelos valores da sociedade em que vivemos, e nos lembra a questão da ética e da moral. Sem dúvida, podemos afirmar que nossa sociedade está eticamente doente e necessita de um remédio vigoroso para se curar. Mas, quando alguém começa a falar em ética e moral, imaginamos logo um cara chato que pretende moralizar ou limitar nossas liberdades. Bem entendido, porém, moral não é nada disto. A moral não se deve entender a partir de proibições, mas como facilitadora e libertadora da vida pessoal e da convivência humana.
Ninguém poderá negar que o homem é um ser capaz de praticar o bem e o mal. Uns dizem que é bom por natureza (Rousseau), outros afirmam que, por natureza, busca destruir os seus semelhantes (Hobbes). Diante desta realidade ambígua do ser humano é preciso se prevenir, impedindo que o mal sobrepuje o bem. Diante do possível mal que indivíduos, ou grupos, podem praticar, prejudicando seus semelhantes, as comunidades, convencionalmente, estabelecem normas e leis que garantam a convivência harmoniosa. A moral pública nasce destas convenções. A própria sociedade, através da educação e de sanções, induz os indivíduos a se conformarem com tais normas para que a convivência comunitária seja mais fácil e humanizada. Tais normas morais ensinam, por exemplo, respeitar a vida, ser justo, ser honesto, ser leal, dizer a verdade, respeitar as leis, praticar a solidariedade, etc... Imaginem uma sociedade em que isto fosse assumido pelos cidadãos! Em tal sociedade não teríamos homicidas, sequestradores, ladrões, mentirosos , difamadores, exploradores, agiotas, corruptos, etc... Para que isto acontecesse, bastaria que cada indivíduo assumisse uma postura ética de seriedade na vida, de respeito aos outros. Mas aí está, justamente, o problema.
Tomando como base a sociedade brasileira, o que fez com que chegássemos a este descalabro moral, a ponto de, a toda hora, estarmos em perigo de sermos assaltados, explorados, enganados, mal atendidos nas repartições, ou sermos desrespeitados...?
A nosso ver, para compreender esta situação é necessário analisar nossa história. Mal se foram 120 anos desde a abolição da escravatura. Muitos dos que hoje possuem grandes fortunas no país as herdaram dos seus antepassados, que foram escravocratas e conseguiram a sua fortuna através da iniquidade praticada pela exploração da mão-de-obra escrava. Poucos destes herdeiros afortunados possuem sensibilidade social. Por isto continuam explorando, ou alimentando a postura escravocrata. Para eles tanto faz que o povo se dane. A ideologia política que nos governa tem as suas raízes nesta situação de exploração do passado. No atual governo se verifica como é difícil voltar-se para o social. Os antigos escravos, e seus descendentes, nunca foram indenizados pelo suor e sangue derramados. Os "marajás" e corruptos deste país se inserem perfeitamente neste passado desumano de nossa história.
Em consequência desta história do passado, e da política que continua se articulando nos mesmos moldes, grande parte do povo brasileiro não tem condições econômicas e culturais para levar uma vida humana digna. Por uma simples questão humanitária, todos possuem o direito a uma moradia digna, à alimentação saudável, a um trabalho dignamente remunerado, à educação, à saúde, etc... Quando, porém, alguém se preocupou seriamente com isto? Muitos dos programas sociais não passam de paliativos e assistencialismos. O único sentido dos políticos seria a realização destas exigências básicas. Será que chegaremos lá?
Para que um povo possa viver eticamente é preciso que suas elites sejam éticas, dêem o exemplo. Mas será isto possível num país em que os mais afortunados adquiriram seu poder pela iniquidade? É preciso ajudar a estes "monstros" a se tornarem humanos.
Falar em falta de ética no Brasil, sem que se reoriente a política social e econômica, destruindo uma prática que se pode denominar de "terrorismo capitalista", da opressão pelo capital e poder concentrado, tirando-a das mãos dos que na sua raiz estão podres, de nada adianta. Ética e, consequentemente, vida humana digna e saudável somente existirão quando os cidadãos de um determinado país tiverem condições humanas de viverem, de se alimentarem material e espiritualmente. Por isto, a ética, ou a falta de ética, não está primordialmente na atitude dos indivíduos, mas nas estruturas adequadas ou inadequadas de tudo que aí está. Os indivíduos se orientam pelos parâmetrso destas estruturas. As leis, por mais belas e perfeitas que sejam, não adiantam se não há estruturas que garantam a sua observância. Já que de cima pouco podemos esperar, no momento, é urgente que a reação cresça nas bases, não aceitando mais que a falta de ética de cima dificulte a convivência humana digna nas bases. E, para que isto aconteça, é preciso renunciar ao comodismo, ao conformismo e à passividade.
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Inácio Strieder é Professor de Filosofia na UFPE - Recife
Publicado em http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/2007206
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