Do aviamento às cooperativas de trabalhadores*
O imperialismo na Amazônia revela como — através da sua política de ecologismo — imprime o caráter semifeudal nas relações de produção e de trabalho
Nazira Correia Camely**
Ao final do século XIX, a economia da Amazônia atendia aos interesses do capital monopolista internacional como fornecedora da borracha, matéria-prima de fundamental importância para o desenvolvimento do capitalismo em sua fase monopolista. Essa economia foi caracterizada como sistema de aviamento, que consistia na manutenção da dependência do seringueiro ao patrão seringalista através do endividamento. Com a falência dos seringais e a expansão da frente agropecuária na Amazônia, nos anos 70 do século XX ocorre o acirramento da luta pela terra nesta região.
No Acre, a luta pela terra é descaracterizada quando o imperialismo alicia antigos ativistas para os movimentos de "defesa do meio ambiente”. Aqui, o exemplo mais famoso é o de Chico Mendes, transformado mais tarde em agente ambientalista.
No final dos anos 80 são criadas na Amazônia as Reservas Extrativistas (Resexs), que passam a cumprir vários papéis: garantir a preservação de recursos naturais para uso futuro dos monopólios; produzir, no lugar de alimentos para as populações camponesas, produtos exóticos para os mercados dos países imperialistas; criar no campo uma população não identificada com os camponeses de outras regiões, mas atendendo interesses mediatos dos imperialistas. Em meados dos 80, instituições vinculadas ao imperialismo, como Ongs ianques e inglesas, atuavam com um conjunto de indivíduos da pequena burguesia, alguns vinculados ao PCdoB, outros ao PT/Igreja Católica, desenvolvendo cooperativas de produção no atendimento das demandas dos seringueiros nas áreas de saúde e instrução pública.
As cooperativas visavam enfrentar os atravessadores (marreteiros) na comercialização da borracha, momento em que a maioria dos seringalistas (proprietários dos seringais), falidos, já transferiam suas propriedade para grandes pecuaristas. Em 1988 é fundada a Cooperativa Agroextrativista de Xapuri (Caex), e em 1993 a Cooperativa Agroextrativista de Brasiléa (Capeb), ambas com usinas de beneficiamento de castanha, agregando-lhes os nomes de duas personalidades assassinadas, Chico Mendes e Wilson Pinheiro, respectivamente.
A Caex recebeu apoio e financiamento de Ongs e Fundações de governos imperialistas como a Cultural Survival Enterprise; Fundação Ford; Fundação Inter-Americana (organismo do Estado ianque); World Wildlife Fund (WWF); Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); instituições dos EUA; a Ong Novib, da Holanda; do governo da Áustria e também de instituições brasileiras como o BNDES e Ibama.
O montante de recursos recebidos pela Caex, no período entre dezembro de 1988 e julho de 1989, alcançou a cifra de US$ 1,8 milhões.
Relações de produção nas cooperativas
A Castanha do Brasil (Bertholletia excelsa) é árvore secular encontrada em várias regiões da floresta amazônica, principalmente no Brasil, Peru e Bolívia. Por ordem de concentração, sua maior incidência ocorre no Acre, Amazonas, Pará e ao norte do Mato Grosso.
Em 1990, começou a funcionar em Xapuri a Usina de Beneficiamento de Castanha Chico Mendes, com a maior parte de sua força de trabalho composta por quebradoras de castanha, assim designadas pela atividade de quebra da casca da castanha para a retirada da amêndoa. A maioria dessas trabalhadoras era constituída por antigas moradoras dos seringais da região, expulsas com suas famílias no período dos violentos conflitos de terra na frente de expansão da economia agropecuária, principalmente na região do Vale do Acre, nos municípios de Brasiléia e Xapuri.
Nos seringais, as mulheres já exerciam a atividade de quebra da castanha para diversos usos da fruta, como o leite e o óleo, enquanto os homens ocupavam-se da atividade de coleta dos ouriços no período da safra. Esse "saber fazer” das mulheres no uso doméstico da castanha foi apropriado pela cooperativa ao contratá-las para a atividade de quebra da castanha. Nas atividades fabris essa apropriação representa a característica de todas as coisas que no capitalismo toma a forma de mercadorias, inclusive os homens e mulheres ao venderem sua força de trabalho. A produção no interior da usina concentrava mais trabalhadoras no setor de quebra, com 90% de participação das mulheres. Inicialmente, de 1990 a 1992, foram contratadas mais de 100 mulheres para a usina, em regime de CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), destacando-se carteira de trabalho assinada, com garantia de benefícios e Previdência Social.
O processo de trabalho na Usina abrange inicialmente a etapa de seleção e lavagem das castanhas que chegam dos seringais. Depois as castanhas passam por um processo de imersão de várias horas onde permanecem num caldeirão para que sua casca seja dilatada, facilitando a fase seguinte, em que as trabalhadoras, auxiliadas por martelos manuais, passam longas horas sentadas executando a quebragem.
A quebra requer muita habilidade, sendo que a maior quantidade obtida de castanhas inteiras garante a melhor qualidade do produto, por isto denominado de castanhas inteiras (tipo 1), castanhas quebradas (tipo 2) e castanhas muito quebradas (tipo 3). Os tipos 2 e 3, depois da retirada das cascas, são utilizados pelas indústrias em doces, biscoitos etc. A quebra da castanha é a fase do processo da produção que impõe às trabalhadoras um ritmo e intensidade de trabalho alto e fatigante — uma extensa jornada de trabalho acompanhada de riscos de acidentes. Aí, como as castanhas chegam do processo de imersão ainda muito quentes, é comum as trabalhadoras queimarem os dedos e receberem golpes involuntários desferidos durante o uso prolongado do martelo manual.
Pior, muito pior
Estratégias ecológicas e de "flexibilização” promovem a piora das condições de vida das trabalhadoras. Em 1992 foi elaborado na Caex o "Projeto Castanha” que objetivava: 1) levar para os seringais da Resex Chico Mendes a atividade de beneficiamento da castanha com a instalação de mini e micro usinas que objetivavam o "aumento da renda de famílias” da reserva extrativista e, principalmente, promover uma atividade em termos "ecologicamente corretos” que agregassem mais valor aos chamados produtos da floresta, como é o caso da castanha, e promovessem atividades econômicas que garantissem a floresta em pé — no caso, as castanheiras; 2) flexibilização da produção e do trabalho com o objetivo de reduzir custos, principalmente os da força de trabalho.
A função ecológica do "projeto castanha” tem como objetivo garantir aos interesses imperialistas a preservação de recursos estratégicos para a indústria da biotecnologia. Daí a necessidade de preservação dos recursos naturais. E novamente, aparecem os agentes do imperialismo que financiaram e promoveram a descaracterização da luta pela terra no Acre em benefício da "preservação” do meio ambiente.
A "flexibilização da produção” é a estratégia utilizada com o objetivo de retirar mais valor do processo de trabalho, para dar um fôlego financeiro à Cooperativa. Para tanto, a Caex demitiu as trabalhadoras e estabeleceu um contrato com outras mulheres, onde elas se comprometiam a efetuar o processo da quebra da castanha nas suas casas, obedecendo aos padrões de produção e normas de higiene, estratégia que pretendia garantir a mesma qualidade do produto obtido na Usina.
Em 1999, a remuneração das trabalhadoras correspondia ao valor da produção obtida com a quebra das castanhas em seus domicílios: R$ 0,55 por quilo de castanha quebrada inteira (tipo 1); R$ 0,35 por quilo de castanha de tipo 2 e R$ 0,25 por quilo de castanha de tipo 3. Para alcançarem o valor do salário mínimo da época as trabalhadoras tinham que trabalhar até doze horas por dia e contar com o trabalho de outros membros da família para obter da quantidade de quilos de castanha quebradas um rendimento mínimo.
Na cidade de Brasiléia, na fronteira com a Bolívia (e palco de luta dos seringueiros nos anos 70), o cooperativismo representado pela Cooperativa Agroextrativista de Brasiléia, colocou as quebradoras de castanha deste município em situação igualmente difícil. A Capeb, fundada em 1993, possui a Usina de Beneficiamento de Castanha Wilson Pinheiro, que funcionou no período de 1999 a meados de 2002, chegando a contratar no período de maior produção até 100 trabalhadoras. A relação de trabalho dessa cooperativa com as trabalhadoras não originou, em nenhum momento, um contrato formal nos moldes da CLT. As trabalhadoras na Usina recebiam por produção. Ou seja, não tinham a garantia do salário mínimo. Produziam na usina em condições de trabalho semelhantes às já descritas na Usina Chico Mendes, apesar de, na relação capital x trabalho, a legislação laboral populista da época Vargas, incorporada na Lei brasileira, garantir determinados direitos trabalhistas e previdenciários. A não realização deste contrato coloca os trabalhadores numa situação de exploração ainda mais intensa.
Aqui, as mulheres trabalhavam em média de dez a doze horas por dia, e muitas não recebiam o valor do salário mínimo. Aquelas cuja remuneração superava um pouco o salário mínimo graças a uma produção maior, com a permissão da gerência da Usina levavam para lá membros de sua família, principalmente os filhos pequenos.
Em 2001 e 2002, a Capeb contratou uma cooperativa de serviços, a Coopserv, para que esta assumisse a relação laboral com as trabalhadoras. A Coopserv — a exemplo das cooperativas que funcionam com o objetivo de retirar das empresas as responsabilidades trabalhistas, ao estilo do que se denominou chamar cooperativas de "gatos”, por serem atravessadoras no fornecimento da força de trabalho às empresas — surgiu como prestadora de serviços para a prefeitura local, na época também administrada pelo PT.
As trabalhadoras de Brasiléia residem nos bairros mais pobres, com os mesmos problemas das cidades maiores: extrema miséria, nenhum saneamento básico, altíssimo desemprego, tráfico de drogas etc. Em novembro de 2003, nas entrevistas que realizei neste local, famílias inteiras não dispunham de nenhum rendimento. Muitas eram chefiadas por mulheres, as quais permanecem longos períodos sem seus companheiros — que vão trabalhar por temporadas nas fazendas da redondeza e também na região fronteiriça com Bolívia, no Departamento do Pando, como coletores de castanha, nas atividades da construção civil ou da pecuária.
Inicialmente, a proposta cooperativista da Caex e Capeb alardeava combater o sistema de aviamento que ainda perdurava nos seringais da região. Mas, a partir da descentralização da produção para os domicílios das mulheres quebradoras, vemos em documentos da Caex que esta paga as trabalhadoras com mercadorias. A prática se reporta à relação de aviamento do seringueiro com o patrão, na qual este adiantava produtos de primeira necessidade que o seringueiro pagava com a produção de borracha. No final resultava sempre um saldo positivo a favor do patrão. No sistema capitalista, relações, que no geral são reconhecidamente arcaicas e superadas, muitas vezes são recuperadas e engendradas sob formas aparentemente novas de relações sociais de produção. Na realidade, escamoteiam a lógica da produção capitalista que tem na exploração e apropriação dos valores gerados pelo trabalho a base de sua reprodução.
Ongs que financiam a Caex e o "Projeto Castanha”
1 - Cultural Survival Enterprise — Ong norte-americana que trabalha com comércio de produtos provenientes das florestas tropicais.
2 - Fundação Ford — Instituição filantrópica norte americana, fundada em 1936. Atua em vários países do mundo tendo como principal objetivos reduzir a pobreza e a injustiça, promover valores democráticos e a cooperação internacional.
3 - Fundação Inter-Americana (IAF) — Organismo público criado pelo governo dos EUA em 1969, proporciona ajuda financeira direta para os esforços de auto-ajuda da população pobre da América Latina e Caribe.
4 - World Wildlife Fund (WWF) — Ong fundada na Suíça em 1961 e atua no Brasil desde 1971. É um fundo mundial para a vida silvestre.
5 - Novib — Instituição holandesa que atua em países da América Latina e África com o objetivo de "promover políticas de desenvolvimento que combatam a pobreza"
*Artigo baseado na dissertação de mestrado "Cooperativas e trabalhadores da pós-modernidade: o estudo de caso das quebradoras de castanha da Usina Chico Mendes”, apresentada ao curso de pós-graduação em economia da UFF.
**Nazira Correia Camely é Professora do Departamento de Economia da Universidade Federal do Acre – UFAC ( nazira@ufac.br)
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