Por Michelle Portela, de Manaus*
Estudo feito por pesquisadores da Ufam em Careiro da Várzea, no interior amazonense, sugere que mulheres superaram o mito da panema e se tornaram maioria entre trabalhadores no setor em comunidades da região
Na mitologia amazônica, a presença da mulher na pescaria é sinônimo de panema, ou azar no resultado, devido à sua suposta impureza. Partindo desse ponto de vista, pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) investigaram o deslocamento dos papéis de gênero em comunidades de pescadores na região, buscando perceber em que medida o mito é atingido em sua origem.
O estudo “Mulheres pescadoras e a resignificação do mito do panema na Amazônia”, desenvolvido no âmbito do projeto “Modos de vida ribeirinha”, apoiado pela Ufam, aborda o universo das mulheres rurais na Amazônia, principalmente a questão da entrada delas na atividade da pesca na comunidade Lago dos Reis, no município de Careiro da Várzea, a 22 quilômetros de Manaus, interior do Amazonas.
A antropóloga Iraíldes Caldas Torres analisou as implicações da participação das mulheres nessa nova atividade na comunidade, na qual até recentemente estavam impedidas de atuar por conta do mito do panema, a temida má sorte que pode acometer trabalhadores extrativistas na região, seja caça, pesca ou a atividade seringueira.
“Na mitologia, basta que a mulher no período da menstruação se aproxime da beira do rio ou toque nos instrumentos de trabalho para ‘empanemar’ os homens. A partir de então, eles não conseguem caçar ou pescar, o que ameaça a sobrevivência local”, disse Iraíldes.
Na comunidade Lago dos Reis, a pesca se tornou atividade realizada majoritariamente por mulheres. O crescimento do ingresso feminino nesse mercado de trabalho é evidente na cooperativa de pesca de Careiro da Várzea, na qual as pescadoras representam 80% dos trabalhadores cadastrados.
“As mulheres assumem a pesca como uma atividade de trabalho, não como um passatempo e muito menos como uma atividade meramente passageira. Isso está ligado ao papel que mulheres passaram a desempenhar na Amazônia como chefes de família”, explicou a pesquisadora.
O trabalho também demonstrou como, ao iniciar uma atividade remunerada, essas mulheres reafirmam a feminilidade, superando as amarras mitológicas. “Elas constroem um universo particular no qual conversam sobre problemas domésticos, ao mesmo tempo em que levam produtos de beleza e cuidam do cabelo e da unha na pescaria. A sociabilidade torna a pesca prazerosa”, afirmou Iraíldes.
Ao terem maior participação na renda familiar, muitas vezes com ganho superior ao do marido, as pescadoras se sentem à vontade para cobrar um empenho maior dos homens no trabalho doméstico. Entretanto, mesmo com as conquistas, as pescadoras da comunidade Lago dos Reis ainda são discriminadas pela categoria.
“Elas percebem o preconceito à medida que são excluídas da formação de chapas e da eleição da diretoria da cooperativa de pescadores, além de não terem acesso aos equipamentos de propriedade coletiva”, disse a pesquisadora.
As pescadoras também não têm direito à carteira de pescador profissional, que garante benefícios como o seguro-defeso, no valor de dois salários mínimos, pago no período em que a atividade é proibida. Além disso, o dinheiro que ganham é geralmente administrado pelos maridos. “Apesar dos avanços, vemos que as mulheres ainda têm muito trabalho para superar o patriarcalismo na Amazônia”, finaliza Iraíldes.
O universo das mulheres na Amazônia será discutido no 8º Seminário Internacional Fazendo Gênero, no simpósio “Intersecções entre gênero e sociodiversidade na Amazônia”, que será realizado na Universidade de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, de 25 a 28 de agosto.
* Repórter da Agência Fapeam
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