Wilson Correia*
Em 2005, participei do IV Seminário das Licenciaturas da então Universidade Católica de Goiás, ocorrido entre os dias 6 e 7 do mês de março. A palestra de abertura coube ao renomado António Nóvoa, autor pela universidade de Genebra, Vice-Reitor da Universidade de Lisboa e Professor na Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e Paris V (França), dentre outras. Naquele Seminário ele dizia:
1 Sobre a especificidade da escola:
“A escola não é o princípio da transformação das coisas. Ela faz parte de uma rede complexa de instituições e de práticas culturais. Não vale mais, nem menos, do que a sociedade em que está inserida. A condição da sua mudança não reside num apelo à grandiosidade da sua missão, mas antes na criação de condições que permitam um trabalho diário, profissionalmente qualificado e apoiado do ponto de vista social. A metáfora do continente (os grandes sistemas de ensino) não convém à escola do século XXI. É na imagem do arquipélago (a ligação entre pequenas ilhas) que melhor identificamos o esforço que importa realizar” (p. 11).
2 Teorias sobre pedagogia e escola:
“Ao longo do século XX, concepções pedagógicas, psicológicas e sociológicas da infância foram-se misturando com 'ideologias de salvação', alimentando a ilusão da escola como lugar de 'redenção pessoal' e de 'regeneração social'. No mesmo tempo histórico, a demissão das famílias e das comunidades das suas funções educativas e culturais ia transferindo para as escolas um excesso de missões” (p. 11).
3 Reformas e assoberbamento de tarefa pela escola:
“Para além do ‘currículo tradicional’, vagas sucessivas de reformas foram acrescentando novas técnicas e saberes, bem como um conjunto interminável de programas sociais, culturais e assistenciais: educação sexual, combate à droga e à violência, educação ambiental e ecológica, formação para as novas tecnologias, prevenção rodoviária, clubes europeus, actividades artísticas e desportivas, oficinas dos mais diversos tipos, grupos de defesa do artesanato e das culturas locais, educação para a cidadania... A lista poderia ocupar o resto deste artigo. Ninguém duvida que, isoladamente, cada um destes programas é da maior relevância. Mas, vistos no seu conjunto, ilustram bem a amálgama em que se transformou a nossa ideia de educação” (p. 12).
4 Da sociedade sem escola à escola sem sociedade
“Sociedade sem escolas, escreveu Ivan Illich, em 1970. Escolas sem sociedade, constatamos nós hoje. ‘Sem sociedade ‘, porque estamos perante uma ruptura do pacto histórico que permitiu a consolidação e a expansão dos sistemas públicos de ensino e que constituiu uma das grandes marcas civilizacionais do século XX. ‘Sem sociedade ‘, porque hoje, para muitos alunos e para muitas famílias, a escola não tem qualquer sentido, não se inscreve num projecto pessoal ou social. Não conseguiremos ir longe nas nossas reflexões, se não compreendermos o alcance desta dupla ausência de sociedade, que, paradoxalmente, projecta sobre os professores expectativas e missões que jamais poderão cumprir” (p. 12).
Isso me levou, tempos depois, a fazer uma palestra em uma Semana dedicada a debates sobre formação de professores, na qual eu defendi, basicamente, quatro teses. Ei-las:
Nós, profissionais da educação e sociedade brasileira, podemos tomar como desafios:
1 O resgate da escola como instituição social.
Penso que a escola não é uma empresa e nem deve atuar na sociedade sob a lei da oferta e da procura, mas como instituição social que lida com um bem socialmente produzido, o conhecimento sistematizado nos âmbitos da filosofia, da ciência e das artes. Desse modo, a escola lida com o bem comum, com a coisa pública, como o que pertence ao mundo do nosso. Não é sem motivo que as entidades privadas que oferecem serviços educacionais o fazem sob a concessão desse direito por parte do Estado, exatamente porque em nossa sociedade, o Estado é a instituição maior que cuida do gerenciamento do bem comum (ou que deveria cuidar). À medida em que ela se torna um espaço ao qual se tem acesso mediante a capacidade de pagar, quebra-se o caráter de todo conhecimento, que é produzido pelo conjunto da sociedade e isso acarreta mecanismos de exclusão, quebra o pacto social fundado na igualdade e redunda em negação da possibilidade de desfrute da condição de uma vida cidadã.
2 A concepção da escola como institucionalmente articulada.
A escola faz parte de uma rede de instituições sociais e como tal deveria ser entendida. A escola não está acima das outras instituições sociais, não está abaixo das instituições sociais, e, muito menos, do lado de fora da rede de instituições sociais. Ela age (ou deveria agir) de mãos dadas com outras instituições sociais e com elas compartilhar o trabalho de contribuir para um projeto de nação. Desse modo, em pé de igualdade, a escola deveria ser compreendida como aquela instituição que tem limites e alcances condicionados pelo conjunto de instituições sob as quais as pessoas se encontram. A escola não é maior, melhor ou mais importante do que nenhuma outra instituição social, ainda que lhe caiba a tarefa socialmente significativa que é a de lidar com o conhecimento sistematizado.
3 O resgate da especificidade da escola.
A sociedade conta com uma rede de instituições sociais, como foi dito, as quais são reservadas missões mais ou menos delimitadas, de modo que sabemos o que as igrejas fazem, o que o exército faz, o que uma empresa faz, o que a família faz, e assim por diante. Também deveríamos olhar para a escola e ter clareza sobre o papel que ela desempenha no seio da sociedade. Escola não foi feita para lidar com assuntos religiosos, assuntos relativos à formação pessoal-familiar das pessoas. Escola não foi feita para lidar com temas ligados ao cuidado humano, cujas tarefas, voltadas para a formação pessoal, deve estar a cargo da família. Desse modo, a escola não deve substituir a empresa, o banco ou quaisquer outras instituições com as quais se relaciona. A escola pode e deve centrar-se nas tarefas atinentes à sua especificidade, identificada com a mobilização (produção, transmissão e aplicação) dos saberes socialmente produzidos e metodológica e sistematicamente organizados da filosofia, da ciência e das artes. O que passar disso poderá ser contado como assoberbamento da escola e poderá ser computado como aquilo para o que ela não existe, como aquilo com que ela não pode e não tem condições de fazer.
4 A tarefa de fazer com que a sociedade esteja na escola, assim como a escola possa estar na sociedade.
Historicamente, a escola pode ser encontrada como a instituição que nasce para formar a elite. Nas sociedades modernas capitalistas, passamos a conviver com uma escola para quem manda e com outra, para quem deve obedecer. Uma escola para os intelectuais e gestores da sociedade; outra para as classes populares, para os trabalhadores, os pensados, os administrados. Nos dias atuais, o estilo de vida baseado no ter, cujos exemplos de pessoas bem-sucedidas são aquelas ligadas ao acesso à riqueza, ao ter, esse modo de vida jogou para escanteio o valor do saber. Passa pelo resgate do valor social e cultural da informação, do conhecimento e do saber esse resgate aí do sentido social da escola. Um desafio e tanto, porque, na condição de empresa, agindo sob a lei de mercado, a escola expulsou a sociedade de seu interior. Como agência formadora para o mercado de trabalho e do cidadão, ambos identificados com a figura do consumidor, o especificamente humano embutido na ciência, na filosofia e nas artes também foi expulso da escola. Aí o social também ficou de fora. Trabalhar no sentido de reposicionar valores humanos e sociais envolvidos nessa parte refinada da cultura simbólica que é o saber sistematizado parece ser a via para que o desafio de fazer com que escola e sociedade se encontrem no interior das salas de aula possa ser levado a cabo.
Como disse antes, esses são desafios que visualizo no debate sobre a escola. Estamos caminhando no sentido do enfrentamento de cada um deles? Não sei. Talvez outras perguntas nos ajudem a pensar nessa questão: Que modelo de homem e de mulher estamos formando em nossas escolas? Estamos formando eles para eles mesmos: o humano para o humano? Que modelo de sociedade estamos pressupondo quando desempenhamos nossas funções? Que sociedade queremos para nós, nossos filhos, para as novas gerações? Queremos um modelo de sociedade mais humana, mais justa, igualitária, solidária ou uma sociedade individualista, pobremente materialista e desigual, em que as brechas para a barbárie sufocam a vida boa e a boa vida que podemos alcançar?
Questões para debate, julgamento e ação, atos sem os quais nunca conseguiremos responder a contento a pergunta-título aí de cima: O que é isto, a escola?
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Referência: NÓVOA, A. ‘Dilemas actuais dos professores: a comunidade, a autonomia, o conhecimento’. In: ARAÚJO, D. S.; BRAGA, M. D. A. & CAPUZZO, Y. C. (Orgs). ‘Perspectivas para a formação de professores: contribuições do IV Seminário das Licenciaturas’ (Anais). Goiânia: Ed. da UCG, 2005, p. 11-28.
*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br
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